Quem escreveu esse livro sobre Jesus?
Ao lermos juntos o evangelho segundo João, uma questão crucial aparece: Quem escreveu esse livro sobre Jesus? Será que foi João, filho de Zebedeu, ou seja, um discípulo e testemunha ocular? Durante séculos era convicção indubitável da igreja de Jesus que esse evangelho era obra do apóstolo João. Depois, porém, manifestaram-se dúvidas a respeito dessa certeza, a começar pelo teólogo inglês Evanson, em 1792, que atribuiu o evangelho de João a um filósofo platônico do séc. II. Desde então a controvérsia sobre a ―autenticidade‖ de nosso evangelho não se acalmou mais. Não podemos expor aqui essa controvérsia em toda a sua amplitude, porém temos de fornecer ao leitor uma introdução às questões. Afinal, leremos o evangelho de maneira muito diferente se estivermos convictos de que é o apóstolo João que está falando a nós do que se tivermos de supor que um homem desconhecido da 2ª ou 3ª geração estaria nos apresentando sua concepção sobre Jesus na forma de um evangelho.
Em primeiro lugar cabe-nos ouvir:
1 – O que o próprio evangelho afirma sobre seu autor.
a – Enquanto o estilo epistolar da época fazia com que os autores das cartas do NT – uma significativa exceção é justamente 1João – se apresentassem nominalmente no início de suas missivas, falta o nome do autor em todos os evangelhos, também no de Lucas. Contudo, sendo ―autor erudito‖, Lucas pelo menos expressou num prefácio algo a respeito de si mesmo e de seu trabalho. Em João (assim como em Mateus e Marcos) falta qualquer afirmação direta sobre a identidade do autor.
b – Embora nosso evangelho não tenha um ―prefácio‖, ele traz um pós-escrito no capítulo 21. Esse capítulo 21 descreve acontecimentos pascais que não aconteceram em Jerusalém, mas na Galiléia. Faz parte deles também o diálogo do Ressuscitado com seu discípulo Pedro (vs. 15-19). Em seguida a esse diálogo consta: ―Então Pedro, voltando-se, viu que também o ia seguindo o discípulo a quem Jesus amava, o qual na ceia se reclinara sobre o peito de Jesus, e perguntara: Senhor, quem é o traidor?‖ (v. 20). E agora um grupo de pessoas, que não conhecemos mais detalhadamente, atesta: ―Este é o discípulo que dá testemunho a respeito destas coisas e que as escreveu; e sabemos que seu testemunho é verdadeiro‖ (v. 24). Essa informação declara um fato decisivo. Nosso evangelho foi escrito pelo ―discípulo a quem Jesus amava‖. Esse discípulo tem de ser um dos doze apóstolos, uma vez que somente eles estiveram presentes na última ceia de Jesus. Em todos os casos, aquilo que leremos em conjunto é
proveniente de uma testemunha ocular, de um homem do círculo de discípulos mais próximos, o qual gozava de uma intimidade especial com o Senhor.
c – Será que podemos definir com mais precisão quem era esse homem do círculo dos Doze? O discípulo, a quem se refere o atestado do pós-escrito, aparece aqui, como também em Jo 20.2ss, diretamente em companhia de Pedro. Em Atos dos Apóstolos, porém, João aparece ao lado de Pedro (At 3.1; 4.13). Do mesmo modo, Paulo em Gl 2.9, considera João, ao lado de Pedro, uma ―coluna‖ na igreja primitiva. Portanto, se nosso evangelho apresenta um ―discípulo a quem Jesus amava‖ nessa ligação com Pedro (também na cena de Jo 13.23s), todo leitor do evangelho precisa ver nele o apóstolo João.
d – Contudo, não seria possível que esse ―discípulo a quem Jesus amava‖ fosse uma figura livremente inventada, simbólica, do ―discípulo verdadeiro‖? Com certeza o seria se ele ocorresse no evangelho apenas de uma forma simbólica genérica. Todavia, no evangelho são atribuídas ações bem concretas justamente a esse ―discípulo‖. Visivelmente o texto refere-se um homem bem concreto do círculo dos apóstolos. W. Michaelis aponta para uma realidade singularmente importante: ―O relato sobre a última ceia, no qual foi inserido Jo 13.23ss, faz parte do acervo consolidado da tradição sinótica. Isso significa que a totalidade do cristianismo da época em que surgiu o evangelho de João sabia que a última ceia de Jesus com seus discípulos representava um fato histórico, e que igualmente sabia quem esteve presente naquela ocasião. Diante desses leitores, que autor poderia ousar inserir uma figura ideal fictícia num relato sobre a última ceia? Sim, que autor daquele tempo teria sido capaz de até mesmo imaginar isto? Essa saída parece ser a pior de todas as soluções possíveis.‖
e – Acrescenta-se mais uma constatação. Nosso evangelho não é parcimonioso no uso dos nomes de apóstolos. Simão Pedro, André, Filipe, Natanael e Tomé são mencionados várias vezes. Somente João e Tiago jamais aparecem no evangelho citados pelo nome! Isso somente é compreensível se o próprio João for o autor, que tem receio de falar de si mesmo citando expressamente o próprio nome. No entanto, quem reconheceu João no ―discípulo a quem Jesus amava‖ – e os primeiros leitores do evangelho tinham de chegar a essa conclusão de maneira muito mais direta que nós hoje – esse também compreenderá a maneira delicada com que João fala de si no evangelho e sugere sua própria conversão no cap. 1.
f – Por fim, não se pode menosprezar também a asserção logo no início do evangelho: ―Vimos a sua glória‖ (Jo 1.14). Nada dá a entender que o autor tivesse a intenção de que esse ―ver‖ deveria ser entendido somente como um ―ver intelectual‖, o qual ele partilha com todos os cristãos. Essa hipótese é até excluída por 1Jo 1.1, onde a mesma testemunha conta que, além de ―ouvir‖ e ―ver‖ a Jesus, até o ―apalpou com suas mãos‖. Considerando que em Jo 20.29 ele imagina expressamente cristãos que ―não viram, e creram‖, não é cabível que o destaque do próprio ver do autor em Jo 1.14 seja diminuído e esvaziado.
g – Não há dúvida de que o autor desse evangelho expressa de maneira reservada, porém muito clara, que ele é João, o discípulo e apóstolo, o filho de Zebedeu.
Por conseqüência, qualquer negação da autoria de João levanta necessariamente uma grave acusação contra o autor e os editores deste evangelho. O autor desconhecido, com um método que tão somente mereceria o adjetivo de astuto, teria tentado criar em seus leitores a impressão de ser o apóstolo João. E o grupo de editores do cap. 21 ainda daria cobertura a essa ilusão, com a expressa asserção da veracidade do evangelista, reforçando assim conscientemente a ilusão dos leitores de que eles estariam lidando com o discípulo João. Uma acusação dessas contra o autor e os editores do evangelho segundo João teria de ser alicerçada sobre razões incontestáveis que demonstrem de modo irrefutável que o apóstolo João não pode ser o autor do evangelho. Será que existem essas razões?
O fato de que elas realmente não podem existir já decorre da circunstância de que pesquisadores como F. Godet, T. Zahn, A. Schlatter e outros estão convictos de que o apóstolo João é o autor desse evangelho. Diante de provas realmente inequívocas a favor da não-autenticidade do evangelho de João eles também teriam de se curvar.
Autor:Werner de Boor
Editora Evangélica Esperança